De que são feitos os melhores dos doces portugueses? O crítico de comida Fernando Melo explica a sabedoria ancestral que está por detrás das 7 Maravilhas Doces eleitas. E que outras deviam ganhar.
A doçaria única que temos corporiza a um tempo o empirismo sublime do trabalho do açúcar, o legado laico dos conventos, e o sentimento impoluto de pertença por parte dos lugares mais recônditos do país. Claro que estamos em festa pelo elenco definitivo das sete recém-eleitas maravilhas doces de Portugal: a Crista de Galo, de Vila Real, a Amêndoa Coberta de Moncorvo e o Mel Biológico do Parque Natural de Montesinho, de Bragança, as Roscas de Monção e os Charutos dos Arcos, de Viana do Castelo, o Folar de Olhão, de Faro, e o Bolinhol de Vizela, de Braga.
O aspeto mais notável da doçaria tradicional portuguesa é o quanto evanesce da doçaria feita nos conventos e a que nos habituámos a chamar conventual. A sua execução era em grande parte feita por empregadas ou religiosas não-residentes e é graças a essa espécie de laicidade que os livros de receitas, os utensílios e as práticas chegaram até aos nossos dias.
Esse vaivém de conhecimento é talvez a maior perplexidade da nossa doçaria. Logo a seguir, o colossal trabalho empírico feito sobre o açúcar, com a definição dos diversos pontos, caldas de várias consistências, e o sublime casamento com ovos, gorduras animais, frutos e licores. Finalmente, as cozeduras e os acabamentos, a tornar tudo inteiramente simples e a permitir, por exemplo, a venda avulso.
No imenso e prodigioso rol de de receitas, há uma lógica de equilíbrios alimentares e nutritivos que infelizmente esbarra e cai nos hábitos atuais, pela abundância em que vivemos. O doce era outrora também alimento e no tempo moderno tornou-se acessório na lógica diária. Comemos demasiado açúcar, e sabemos hoje que os problemas que levanta suplantam em muito o sal. Desde os comprimidos que tomamos aos cereais que damos aos nossos filhos, tudo está pejado de açúcar, para que não seja amargo nem desagradável. Acreditemos contudo nas instituições e no conhecimento científico para tratar desse enorme desequilíbrio alimentar. A tendência é de melhorar, podemos estar confiantes.
A eleição das 7 Maravilhas Doces de Portugal trouxe a lume a inefável revelação do incrível reticulado regional que temos, e de como se vive intensamente as muitas doçarias, talvez mais até que os pratos da cozinha tradicional. A forma, o segredo e os ingredientes, a chamada mão, são como dar voz a gigantes adormecidos desde há muito. Ao longo do relativamente tortuoso e penoso ciclo de votações, o que se deu a conhecer cumpriu só por si o desígnio. Agora que chega ao fim a ninguém serve inteiramente as sete maravilhas apuradas, e ninguém, diga-se, as conhece todas.
As cristas de galo transportam em si quase Artur Cramez fundou a Casa Lapão no dia 13 de Dezembro de 1990, juntamente com as filhas Álea Zita e Rosa Maria, consumando um percurso que remonta ao início do séc. XX. O convento de Vila Real foi extinto em 1855, mas os segredos esses permaneceram e por um encadear de felizes acontecimentos as receitas vieram parar às mãos da mãe de Artur, Alzira Cramez e ainda hoje são recortados com a mesma ferramenta de há duzentos anos. Gemas, amêndoa, maçã verde e outros segredos compõem o recheio. Rosa Cramez é quem leva actualmente as rédeas do negócio.
As amêndoas cobertas de Torre de Moncorvo são únicas, tanto pela qualidade do fruto autóctone propriamente dito, como também pela bacia de cobre em que são lentamente cobertas por uma calda que vai colando às ditas e consolidando os sabores. Vende-se abundantemente em Moncorvo, normalmente em saquinhos, ao lado das amêndoas apenas torradas. Há que dizer que cobrir as amêndoas torradas com uma calda é um tratamento semelhante por exemplo ao que recebem na Mêda e noutras localidades. São deliciosas com vinho do Porto e entretêm a boca.
Surpreendeu tudo e todos a eleição do mel do Parque de Montesinho, produzido nas colmeias enter Vinhais e Bragança, tendo na base flores silvestres como urze, castanha e alecrim. Foi um caso notável de mobilização, conseguindo impor-se na votação que como sabemos é feita por telefonemas de valor acrescentado. O sistema de votação tem essa pecha mas também a virtude de exprimir directamente o esforço dos locais. E o mel é maravilhoso, convenhamos.
O Minho também se organizou em força e conseguiu eleger as roscas de Monção e os charutos dos Arcos de Valdevez. As primeiras são feitas de farinha de trigo e água, juntando-se depois manteiga, açafrão, fermento, sal e açúcar, ficando a levedar durante duas horas. As mãos experientes das doceiras moldam depois as roscas que vão em tabuleiro ao forno de lenha com a porta aberta, retiram-se quando alouram, sendo depois polvilhadas com açúcar refinado. Desfazem-se na boca e são viciantes, não há quem lhes resista.
Os charutos dos Arcos são para os mais gulosos e são feitos com obreia - massa de hóstia - enrolada em charutos que são depois recheados com creme à base ovo e amêndoa. Impressionante e notável a eleição do folar de Olhão, especialidade familiar algarvia, onde é vulgarmente conhecido como folar de folhas. De facto, trata-se de uma pilha de camadas cobertas por açúcar, manteiga e canela, dá algum trabalho mas a compensação à mesa, especialmente na altura da Páscoa, é vastamente recompensadora.
É de inteira justiça também a eleição do bolinhol de Vizela. É um pão de ló coberto com açúcar e ao contrário do pão de ló tradicional, é feito numa forma retangular baixa, e depois coberto com a calda. Fica com um vidrado baço que acrescenta solidez à superfície.
Simples mas vivos no quotidiano
Quando olhamos para as especialidades eleitas, encontramos produções semelhantes um pouco por todo o país, mas as regiões souberam chamar o seu ao peito e lutar por ele, e isso é admirável, num país de brandos costumes e relativamente apático em relação aos seus tesouros e trunfos. Todos são suficientemente simples para permitir a confeção em casa, aspecto identitário importante e sinal de que todos também estão vivos nos lares portugueses.
Apetecia juntar à lista outros doces menos simples, como por exemplo as trouxas de ovos das Caldas da Rainha, o pão-de-ló de Margaride ou o de Ovar. Ou suplicar pela eleição da maravilhosa ameixa d"Elvas, Rainha Cláudia confitada na sua própria calda. E já agora, clamar pela sericaia, criação tão alentejana e tão universal ao mesmo tempo. Ou saltar até Resende e impor as cavacas entre os eleitos; o Dom Rodrigo algarvio; as castanhas doces de Viseu; e tantos outros.
Uma eleição é uma eleição, e se a organização tiver a boa inspiração de compilar em livro todos os concorrentes de cada círculo regional, temos uma excelente plataforma de estudo e aprofundamento da parafenália doceira que é também Portugal. E que pelos vistos os portugueses não dispensam.
Fonte: dn.pt, 8/9/2019