A relação entre o Fisco e as empresas nem sempre é fácil de gerir e há muitos casos em que o tecido empresarial diz mesmo sentir-se injusticado. O caso Via CTT é uma das várias incoerências apontadas por um contabilista certificado contactado pelo SOL.
No início de julho soube-se que a Autoridade Tributária (AT) estava a notificar milhares de contribuintes para o pagamento de coimas por falta de adesão ao Via CTT, um serviço de caixa postal eletrónica gerida pelos Correios e usado pela Fisco para comunicar com os contribuintes obrigados a liquidar IVA. As ‘multas’ podem variar entre os 50 e os 250 euros. No entanto, o Ministério das Finanças optou por suspender a cobrança das multas por considerar que os contribuintes tinham culpa diminuta e pelo facto de não ter havido perda de receita para o Estado.
«A questão da Via CTT até é uma questão que em minha opinião não é tão problemática. É chato, mas estes não são os casos piores», diz ao SOL o gestor de uma empresa que presta serviços de contabilidade e gestão. A AT «vir agora passados uns anos chatear por causa disto faz sentido? Não faz. Não teve nenhum impacto nas receitas do Estado nem na relação do Estado com o contribuinte», salienta. «Mas com isto podíamos nós bem. O que eu critico mais são os casos em que a injustiça e a incapacidade do contribuinte em resolver o tema de forma satisfatória é gritante», argumenta, antes de começar a exemplificar as muitas e recorrentes situações que existem um pouco por todo o país.
Desproporcionalidade
Quando fala de injustiça, o contabilista certificado refere-se a casos em que o contribuinte paga coimas e/ou impostos a mais do que aquilo que deveria ser pago. E dá exemplos. As empresas quando são constituídas têm de dar início à atividade. Têm 15 dias para o fazer, mas se falharem esse prazo pagam imediatamente uma coima. E se falharem o prazo de pagamento dessa ‘multa’, o valor quadruplica. Trata-se, segundo o mesmo, de «um ato administrativo que não tem implicação nenhuma para os cofres do Estado», lamenta. Os contribuintes vão pagar uma coima de 600 euros só por não terem declarado o início de atividade. Nos 15 dias a coima será de 75 euros - 150 euros reduzidos para 50%, mas se os valores não forem pagos nesse timing subirá para 600 euros.
Uma situação que não faz sentido, para o responsável. «O Estado não é prejudicado. São valores absurdos e completamente desproporcionais», argumenta ao SOL o especialista, que dá outro exemplo para ilustrar a desproporcionalidade das coimas.
Toda a legislação é feita no pressuposto que o IVA é dinheiro do Estado temporariamente na posse das empresas. Aliás, é o imposto que mais contribui para o Orçamento do Estado, vale 50% em termos de receita fiscal. «Se o contribuinte se atrasar a pagar o IVA um segundo paga 30% do valor em causa», relata. A verdade é que a empresa não paga imediatamente este valor porque quando as Finanças emitem a coima e se esta for paga dentro do prazo o valor passa de 30% para 5%. Ainda assim, terá sempre custos extra.
«Existe aqui uma desproporção. Se um contribuinte tiver de pagar 100 mil euros de IVA num determinado prazo, se não pagar a horas, paga imediatamente 5000 euros. E se não pagar no espaço de um mês esse valor subirá para 30 mil euros porque fica sujeito a uma penalização de 30%», salienta.
O valor da coima «é complemente desproporcional e em minha opinião imoral», afirma. «Muitas vezes isso pode significar o rombo de uma empresa ou colocá-la em situação financeira difícil, o que vai gerar problemas com o Fisco. É uma bola de neve».
No entanto, para o gestor não está em causa a obrigação do contribuinte em cumprir, mas a desproporcionalidade e a falta de exemplo da AT.
«Além da materialidade dos valores não fazer sentido e os prazos serem incomportáveis, cada vez que se pede à administração fiscal para perceber o problema, esta não quer saber. Mata primeiro e pergunta depois. Não há um Estado de Direito dentro do próprio Estado. É preciso falar com alguém para explicar a situação e perceber o problema. Não há disponibilidade».
O contabilista considera não ser um bom exemplo que haja intolerância total e que os custos das penalizações seja aquele que é. Mas os problemas não ficam por aqui. O responsável aponta também para uma inacessibilidade grande. «Não se consegue falar. Existe sempre a resposta ‘isso não é comigo, não tenho poder para decidir, deixe a sua reclamação e nós depois respondemos’. E existe na esmagadora maioria dos casos uma total falta de flexibilidade», garante.
Desespero
Outro exemplo dos problemas apontados com a AT, segundo o contabilista, é quando há acertos a fazer. «Quando é preciso fazer acertos de contas, compensações, é um desespero porque não se consegue resolver as coisas a tempo» e como a legislação está construída, «o trâmite processual não pára».
E enquanto a não chegar uma decisão, o trâmite continua. «Até que a pessoa consiga inequivocamente provar que não tem culpa é considerada culpada e é vista como um malandro. E todo o sistema está montado para isso. Quer o individual, quer a empresa», conta o contabilista certificado.
E lembra que muitos dos processos dizem respeito a quantias baixas. «Para uma empresa que fatura meio milhão de euros por ano, se calhar 100 ou 200 euros junto das Finanças é completamente irrisório. As empresas muitas vezes pagam porque o tempo custa mais do que isso. E pagam em duplicado e em triplicado». E para serem ressarcidas «têm de fazer o caminho das pedras. Provar, comprovar, recomprovar e esperar» que a AT dê resposta.
Este é um tipo de problema que é frequente. E a principal justificação é que a AT não tem capacidade de resposta. «Mas mais uma vez é uma injustiça», que está exemplificada nos prazos, garante. Muitas vezes quando a Autoridade Tributária se pronuncia «o contribuinte tem uma semana, 15 dias, um mês no máximo para pronunciar, justificar, para resolver a divergência, senão cai o Carmo e a Trindade em cima até os bens serem penhorados», salienta, lembrando que «há ‘n’ exemplos de falta de resposta. Está um ano, dois anos, três anos, para resolver uma questão e o contribuinte que espere».
Compreensão e falta dela
Para o gestor da empresa que presta serviços de contabilidade e gestão, «a falta de capacidade humana pode justificar» as falhas. «Até podemos compreender isso, mas o Estado também tem de compreender. A Autoridade Tributária não compreende quando isso acontece do lado do contribuinte, mas nós temos de compreender quando acontece com a AT».
De acordo com o especialista, o Fisco para dar o exemplo «tem de inspirar e liderar com princípios coerentes e aceites» porque desta forma só incentivam a que as «pessoas andem descontentes, andem revoltadas, que vejam a Autoridade Tributária e os impostos como um mal».
O responsável diz que a situação é contrária ao que acontece, por exemplo, no centro da Europa onde as pessoas têm uma consciência muito maior do papel central que é todos contribuírem para o mesmo. Com a situação em Portugal «não há uma união, fomenta-se a evasão fiscal, fomenta-se o mercado paralelo e é contraproducente», aponta.
Segundo o especialista, «felizmente 99,9% das pessoas são honestas e o espírito é sempre cumprir para não ter problemas». Mas «as pessoas também não gostam de ser abusadas e é isso que sentem».
Para o contabilista e gestor, a «unidade de medida não é a mesma, a capacidade de resposta não existe, a vontade de resposta não existe, a Autoridade Tributária está sempre do lado do problema e nunca do lado da solução e não há uma capacidade de diálogo e de explicar e perceber e resolver as coisas na hora».
Devidas exceções
Falta de capacidade, falta de diálogo, falta de autonomia e falta de capacidade de resposta, para além de uma bitola injusta são as principais críticas que vêm da experiência profissional deste especialista, «com devidas exceções».
O gestor conta já ter tido «experiências de bom serviço, bom atendimento, boa capacidade de resposta» e que já trabalhou com «profissionais da Autoridade Tributária excelentes, pessoas intrinsecamente com vontade de ajudar e de resolver os problemas».
O contabilista dá outro exemplo: «Há um caso do IRS de 2016, em que a repartição de Finanças, neste caso de Mafra, disse que não tinha capacidade para analisar aquele IRS, teve um ano e meio com aquilo na gaveta, foi preciso ir lá e ligar não sei quantas vezes para reagirem», conta.
Este IRS ainda está por liquidar. Ainda se espera uma decisão das Finanças. E, acrescenta ao SOL: «É um caso de uma situação igual para três membros da mesma família. Um dos membros já teve o processo despachado de uma ponta à outra e recebeu o dinheiro. Os outros dois ainda não têm a situação resolvida. Num deles até se pode dizer que a repartição de Finanças é diferente, na outra não. É a mesma. Não se percebe a inconsistência, a incongruência», conclui.
Fonte: sol.sapo.pt, 25/7/2018